A acalorada discussão em torno da aprovação ou não do Orçamento esconde um dogma inerente, cuja perniciosidade suplanta os per si inenarráveis malefícios do dito documento. O que está em causa é a verdadeira noção de Estado e de toda a concepção económica e social de Portugal. O projecto apresentado encontra fundamentos num eixo (agora sim, verdadeiramente mefistofélico) de cinco mitos que transformam os horizontes próximos num verdadeiro paraíso de Dali:
O desastre financeiro e a crise económica que atravessamos são consequência directa de estados sobredimensionados e os mercados financeiros não podem ser responsabilizados pela situação
O descalabro a que assistimos desde 2007 é filho da ganância e do despudor de Wall Street e congéneres. Activos tóxicos de consequências desconhecidas e especulação maximizada reduziram a cacos a economia internacional. Através de bailouts sucessivos, os estados provaram ser a solução e não parte do problema.
O défice orçamental está numa incontrolável espiral ascendente, que, se não for parada, trará a Grécia para o lusitano recanto
O défice não chega aos dois dígitos e situa-se em níveis francamente abaixo dos apresentados pela Irlanda ou pela própria França. Não se controla através de medidas extremas de contenção da despesa pública, que mais não fazem do que estrangular uma já moribunda economia. Controlem-se e racionalizem-se os gastos públicos, sem incorrer numa deriva recessiva.
A origem de todos os males reside na natureza excessiva dos gastos públicos e a posologia a aplicar é a redução exponencial dos mesmos
Apesar de um crescimento da despesa pública acima do desejável, a verdade é que a gigantesca crise que envolve a economia global é originada pela queda abrupta do investimento privado. Sem acesso ao crédito, os agentes privados, nomeadamente as fedorentamente famosas PME´s, estão cada vez mais encurralados. O investimento público assume pois um papel essencial neste enredo de série B que envolve todos, mas cuja factura só chega à caixa de correio de alguns.
O sector privado cumprirá com maior rigor e eficácia as funções até agora exercidas pelo Estado.
Mito de sempre, resiste a experiências negativas que há muito deviam ter arrumado a noção numa qualquer gaveta da História. Presumir que entidades privadas, orientadas e balizadas pelo horizonte do lucro, poderão atingir benevolentes objectivos através de políticas fomentadas pelas características inerentes à sua própria natureza, é a mesma coisa que entregar as chaves de casa a um foragido. Non sequitur.
O equilíbrio orçamental é a pedra de esquina de qualquer cenário de estabilidade económica e de preços
Montague Norman ou Herbert Hoover dão pulos de alegria numa qualquer sepultura, perante semelhante argumentação. Nos anos 20, foi esta linha que conduziu a globalidade das nações ao flagelo da Depressão. Os ciclos que caracterizam as economias de matriz capitalista são controlados através de apertada regulação dos mercados e dos agentes económicos. Orçamentos de austeridade em tempos de crise são uma excelente forma de garantir a perenidade da mesma e o agravamento das complicações económicas e sociais.
A novela que envolveu a antecâmara da mais do que esperada aprovação do Orçamento de Estado acaba assim por escamotear aquela que deveria ter sido a discussão em torno do famigerado documento. Mais do que discutir quais as medidas draconianas a serem tomadas, dever-se-ia optar pela discussão do paradigma que até aqui nos trouxe. Impregnada que está a ideia de inevitabilidade de apertar o cinto, urge redefinir as linhas com que cosemos a nossa sociedade e os olhos com que perscrutamos o futuro.
Impõem-se políticas responsáveis e socialmente justas. Atribuir responsabilidades a quem aqui nos guiou e atentar para aqueles que mais irão sofrer com a conjuntura que se anuncia ao virar da esquina. Políticas fiscais responsáveis e assertivas, transparência tributária, moralização da actividade política e reforço do Estado Social são fórmulas nunca verdadeiramente aplicadas. Anunciam-se messiânicas medidas, que não passam de relíquias travestidas em cores de néon. Até quando? O Zandinga que em mim palpita não tem a ousadia de apontar hora, nem dia. Mais cedo do que tarde, espero. Os mitos morrem quando menos se espera.
in Câmara de Comuns